Angelina Jolie conversa com a diretora Waad Al-Kateab de We Dare To Dream

Angelina Jolie entrevistou a diretora Waad Al Kateab, do documentário We Dare To Dream, sobre a equipe olimpica de refugiado nas olimpiadas de Tóquio de 2020 (que foram realizadas em 2021, devido a pandemia da Covid 19) e que Angelina como uma das produtoras executivas.

Abaixo, você poderá ler a transcrição da entrevista que foi realizada atravez de uma chamada pelo Zoom.

Waad Al Kateab: Olá. 

Angelina Jolie: Olá.

WAK: Como você está?

AJ: Estou bem. E você, como está?

WAK: Bem. Prazer em vê-la.

AJ: Estávamos tentando descobrir como fazer tudo isso. Tivemos um momento em que estávamos no meio de Budapeste e foi, como faço para colocar a câmera sobre isso ou aquilo... Então demorou um segundo, então...

Bem, Eu gosto do seu pôster.

WAK: Muito obrigado.

AJ: Como você escolheu o pôster?  Eu sempre fico curiosa, sabe, para escolher.

WAK: Então, acho que foi muito estranho, porque quando começamos a fazer o filme, ele era claramente sobre a equipe e a experiência de estar na equipe. Para mim, nunca se tratou disso, nunca se tratou do elemento esportivo, que é muito importante no filme, mas não se trata do fato de os refugiados serem eles mesmos, o que foi muito importante, é importante, mas não se trata disso.

Acho que para mim, o que eu realmente queria que as pessoas levassem do filme é, o que vem depois? O que vai acontecer com essas pessoas, depois dessa experiência? Sabe, não apenas o que você viu no filme, mas o que deixamos para trás. E, para mim, Wael era o significado disso. Então, quando começamos a filmar com ele, não sabíamos que Wael não conseguiria entrar para a equipe, e no momento em que percebemos que ele tinha um caminho diferente neste filme, acho que foi como se agora, seu papel, sua personalidade, seu sonho e aquilo pelo que ele está lutando, se tornassem mais importantes e ele fosse a representação de todos esses quatro ou cinco atletas no filme, todos esses vinte e nove que estavam na equipe, como todos os outros refugiados, então, claramente, para mim, o que importa é o legado que essa equipe deixará, os sonhos, quantas pessoas eles inspirarão, quantas pessoas vão olhar para eles e se ver neles, mais do que o grande legado e o brilho, é estar na plataforma das Olimpíadas e tudo isso. Então, para mim, ficou claro que sempre voltamos ao Wael, começamos com o Wael e terminamos com o Wael, e isso é o que mais se pode ver no próprio filme.

AJ: Eu sempre fiquei muito emocionada com isso, sabe, quando comecei a me encontrar com diferentes pessoas que são refugiadas e alguém falou sobre isso, é como se fosse uma multidão de pessoas, que se move no mundo de uma maneira muito diferente. É uma população. É um povo e é muito difícil explicar o que une as pessoas de um país, dizer que são todas deste país ou que são todas desta raça ou que são todas desta fé, certo, é algo que une pessoas diferentes. O que une as pessoas deslocadas, é algo tão diferente, tão extraordinário, tão incomum, tão intenso e muito diferente, que trouxe à tona, suas humanidades, lutas, forças vitais e a compreensão dos aspectos mais sombrios do ser humano e também dos mais belos, na forma como vocês superam isso juntos, como essa família, é realmente uma família, é um povo, uma população de refugiados, uma população deslocada.  Acho que é isso que deslocou mais de 110 milhões de pessoas em todo mundo, e são essas pessoas que entendem o que é ser forçados a deixarem suas terras natais e viver como refugiados e eles têm em comum, todos os motivos pelos quais foram deslocados.

WAK: Exatamente, é mais do que um país em si, é a humanidade. É como nós, como se fosse incrível estar naquele espaço e conhecer e encontrar essas pessoas, as pessoas que as pessoas verão no filme, mas também outras pessoas nos bastidores. Porque acho que todos nós, viemos de países diferentes, falamos idiomas diferentes e, às vezes, temos que falar, sabe, tipo, com gestos, às vezes, nem mesmo falamos as mesmas coisas. E cada um de nós, teve de partir por motivos diferentes. Cada um de nós, teve que deixar para trás coisas diferentes e cada um de nós, buscou objetivos e sonhos diferentes. Mas, assim como eu, fiquei muito surpresa com o quanto temos em comum, em tantos momentos parecidos, em tantas reações parecidas e em tantas maneiras de lidar com boas e más notícias ou com a compreensão do mundo. E acho que, eu sempre sinto que não há um filme ou cem milhões de filmes, que explicariam o significado de ser um refugiado. Mas, para mim, como esse tipo de experiência compartilhada, dor compartilhada, esperança compartilhada, sonhos compartilhados, foi algo que ficou muito claro desde os dois primeiros minutos em que me sentei com cada um deles. E as pessoas sempre me perguntam: "Como você se envolveu nisso?

Lembro-me de que logo no início do projeto, quando estava fazendo a pesquisa, depois de conhecer a Anjelina que esta no filme, eu estava pesquisando coisas diferentes. Depois, vi uma entrevista que você fez com ela, durante as Olimpíadas do Rio de 2016. E sua entrevista com ela, de mãe para mãe, foi muito comovente, e quero dizer, eu a conheci naquela época, e sabe, foi como, eu te admiro e amo tudo o que você está fazendo. Mas também acho que isso fez com que você se apresentasse a mim, de uma forma diferente, quando te vi falando com ela, de uma mãe para outra mãe e o quanto eu compartilhei pessoalmente com meus próprios filhos e o sacrifício que tive de fazer na minha vida por eles. Percebi que somos todos de lugares diferentes, temos coisas diferentes, mas podemos nos conectar em um segundo, sem qualquer tipo de naturalidade, então foi incrível ver isso, e me lembro da primeira vez que lhe enviei um e-mail, era como, estou fazendo isso, vi você Anjelina, e tipo, fiquei muito empolgada porque acho que, sim, todos nós estamos conectamos. 

AJ: É tão fácil e você está certa. E é a humanidade, certo? Eu vi seu trabalho antes de conhecê-la e senti que estava observando um ser humano, pela qual eu tinha tanto amor e admiração, e aprendi sobre você como mãe, como pessoa e como pensadora, e acho que quanto mais nos lembrarmos disso hoje, mais do que nunca, sabe, há tanto foco em como somos diferentes e dividimos as pessoas, e em fazer com que as pessoas tenham medo umas das outras ou pensem sobre uma população dessa ou daquela maneira, e perdemos todo o lado de que essas são apenas barreiras, essas são apenas construções inventadas, de como somos diferentes ou de como vivemos, mas somos apenas mães, pessoas e seres humanos, tentando descobrir nosso caminho na vida, e pessoas como você, que experimentaram os extremos de, eu sempre penso nisso como a desumanidade, que você viu. Você viu a vida de uma forma tão extrema que a maioria das pessoas neste mundo nunca saberá, nunca saberá realmente como é isso. Que nós possamos aprender algo com você e com todos os refugiados.

WAK: Sim, exatamente, mas acho que quando olhamos para o mundo hoje e como, infelizmente, tudo parece não estar indo para um lugar melhor, e em uma circunstância como essa, acho que é muito importante nos reconectarmos novamente e conscientizarmos as pessoas. 

Nunca foi fácil, mas não vai ser fácil. E, é claro, esperamos que o mundo não esteja entrando em uma situação como a que estamos testemunhando hoje, mais ódio, mais guerras e mais problemas, mas acho que isso é mais como um alerta, e é alarmante, e as pessoas deveriam realmente levar isso a sério, porque quando falamos sobre a Síria, por exemplo, não foi só isso que aconteceu, quando falamos da Ucrânia, da Palestina, de outros países ao redor do mundo, isso está acontecendo agora, enquanto estamos aqui conversando. E isso se tornou mais urgente. 

Esses 110 milhões de refugiados, não são apenas números, mas o número está aumentando a cada dia. Acho que isso realmente incentiva as pessoas a levarem isso mais a sério, a olharem para suas vidas, a olharem para a vida de outras pessoas. A única maneira de sobrevivermos a essa loucura, é ter mais compaixão e mais amor uns pelos outros.

AJ: E são as pessoas do mundo, certo? O povo, não os governos, não os lideres. São as pessoas, as massas, a maioria, e se escolhermos nos apoiar mutuamente, se nos unirmos, isso soa muito revolucionário e idílico, mas é verdade. Já vimos isso na história, quando as pessoas se levantaram e decidiram que queriam viver juntas de uma determinada maneira, já vimos isso acontecer em países, mesmo que não tenhamos visto muito isso, em um nível global, mas é o momento em que vivemos. 

O que eu acho que tem sido muito assustador, é o fato de eu ter trabalhado muitas vezes com populações de refugiados. No início, eu achava que era a conscientização, as pessoas só precisavam estar mais conscientes. Se estivessem conscientes, haveria mudanças. Se elas estivessem conscientes, todos nós defenderiamos os diferentes direitos humanos e todos nós seriamos uma ameaça. E então você pensa que é isso que acontece. Mas então você começa a perceber que conscientizou alguém, ou que o mundo inteiro está ciente de certas coisas, mas então, bem diante de nossos olhos e com o mundo inteiro assistindo, no Afeganistão, vemos o retorno do Talibã, o retorno da evacuação que é feita dessa forma. E já vimos tantas vezes, que você começa a sentir, você começa a perceber, bem, o que é isso? O que está fazendo com que as pessoas fiquem cada vez mais desalojadas? Há tanto foco na quantidade X de pessoas em uma fronteira ou na quantidade X de vistos. Os números estão muito além, a realidade está muito além, e realmente, por que os conflitos continuam década após década, sem resolução, sem responsabilidade, sem capacidade de retorno, sem desenvolvimento pós-conflito, para realmente estabilizar o país? Por quê? Quem se beneficia com tudo isso?

WAK: E até mesmo não deixá-los ir para outro país e repetir o mesmo cenário e ver as mesmas coisas acontecendo novamente e, sim, como você acabou de dizer, é como, o que realmente é necessário e, sim, a conscientização é algo que acho que todos nós acreditamos ser muito importante, mas, não é suficiente, precisamos de mais ações, precisamos que os governos assumam mais responsabilidade, queremos que as pessoas pressionem isso e, ao mesmo tempo, por maior que pareça, eu também acredito que, como mãe, isso começa em minha casa, no meu relacionamento com meus filhos, nas coisas que essas crianças dentro de casa devem saber e com as quais elas devem se importar, porque se as protegermos demais, de forma que elas não saibam o que está acontecendo lá fora, o mundo ficará cada vez mais complicado.

AJ: E é muito difícil, porque acho que muitas pessoas e crianças, hoje em dia, há tanta coisa, o mundo está em uma situação muito difícil, estamos retrocedendo em muitas coisas. Estamos vendo tanta hostilidade, tanta violência, tanta mudança climática, que é muito difícil. Eu acho que em algum momento, vamos aprender que o sistema nervoso de muitos de nossos filhos, está prejudicado. Mas acho que uma das coisas que sempre achei bastante chocante nos livros de história, especialmente nos Estados Unidos, é a maneira como somos ensinados. Muitas vezes nos ensinam que somos os melhores. Nos ensinam sobre nós. Nos ensinam sobre nossas contribuições. Não somos criados para respeitar e admirar as contribuições de outras pessoas no mundo, seja de forma intencional ou não. Não é assim que somos educados. Somos educados para pensarmos em nós, e isso acontece em muitos países, somos o centro, e essa mentalidade, creio eu, é o início das divisões, é o início do desrespeito, é o inicio de pensar em alguém como um outro, porque você não está sendo educado e não está discutindo os outros povos do mundo, como eles deveriam ser vistos, tratados e considerados. E por isso, espero que um dos lados positivos de todos nós sermos capazes de fazer isto, é que cada vez mais pessoas das próximas gerações, realmente conheçam pessoas pelo mundo, além dos conflitos e das divisões, realmente conheçam uns aos outros. Esse é um dos motivos pelos quais adorei seu filme.

WAK: Acho que, por mais que eu quisesse fazer esse filme sobre representação, sabe, e como eu estava indo muito a fundo na primeira ideia que tive, senti que, o tempo todo, as pessoas lidam com nós refugiados, como se fôssemos vítimas, vilões ou super-heróis. Não há escolhas comuns e ninguém nos vê como iguais, e mesmo quando as pessoas nos veem como super-heróis, há uma espécie de história hollywoodiana em suas mentes, sobre como somos extraordinários e os outros não são assim, e é por isso que somos especiais. E para mim, eu pensei, a primeira coisa que eu queria fazer era, tipo, eu realmente queria que fosse divertido, então estavamos sentados juntos com esses atletas, sabe, igualmente, como se estivéssemos aprendendo sobre eles, e estavamos conhecendo-os, estavamos conhecendo-os, até mesmo para saber de seus traumas e de suas escolhas difíceis na vida. Como amigos, sem expectativas, sem estereótipos, sem nada, e essa foi a minha visão, é isso que me motiva, é isso que quero fazer.

Esse filme é sobre representação e o caminho através da representação, tanto quanto possível. Então, quando fiz o filme e quando olho para trás e vejo tudo isso, acho que havia muita coisa, sabe, como eu era, como se tudo fosse diretamente, sabe, como se fosse em direção a eles, sem nenhuma camada, porque eu realmente queria que as pessoas vivessem essa experiência verdadeira, como se você os encontrasse na estação de ônibus, ou se os conhecesse, porque seu filho e o filho de Angelina, frequentam a mesma escola, ou como se fosse tão normal quanto poderia ser, e depois revelasse, minuto a minuto, mais sobre o que isso realmente significa e até onde eles chegaram. Isso é uma coisa. Mas, por outro lado, do ponto de vista da produção cinematográfica, talvez esse seja realmente um chamado para muitos outros cineastas e pessoas.

Temos muito a fazer para contribuir. E o fato de que, como refugiados neste setor, há muitos de nós. Talvez as pessoas não nos vejam ou talvez não sejamos visíveis em muitos lugares, mas estamos em toda parte, em todos os departamentos, em todos os aspectos desse trabalho. E o que realmente precisamos, é de um pouco de espaço, e não estou pedindo isso, porque esse é o direito específico, simples e básico que temos como seres humanos, por estarmos nessas novas comunidades, mas em muitos lugares, eu me tornei a diretora premiado ou algo assim, mas há muitos como eu, talvez haja até pessoas melhores do que eu no que estão fazendo, e o que elas realmente precisam é apenas desse acesso. Tive a sorte de conseguir isso e de ser realmente amada e apoiada por muitas pessoas nesse filme, por você, por Joanna, Joe, como muitas pessoas que estão nesse filme. Mas o que eu realmente sinto, é que a luta agora, é mais para conquistar mais pessoas como nós. Porque nós as conhecemos, podemos identificá-las, nós as vemos, mas não é que elas ainda não estejam lá, elas ainda não estão suficientemente lá. E vocês me conhecem, com todo esse amor, nunca foi fácil. E tive que fazer muito para conseguir chegar onde estou hoje. Mas sei quantas pessoas estão esperando por isso, que uma pequena porta se aberta, sabe, e acho que para mim, esse filme é um grande apelo para todos que podem pegar a mão de outra pessoa e trazê-la, porque ela merece participar.

AJ: Eu concordo. E eu diria até que, assim como você, a contribuição como artista, simplesmente como artista, não como humanitária, nem mesmo como mãe, mas como pessoa criativa, que assiste a filmes e dirige e coisas assim, eu quero ser um membro da plateia, quero aprender e vivenciar a arte, a criatividade e a narração de histórias de mentes extraordinárias. É isso que eu quero. E como estamos falando de uma população que sabe mais sobre os extremos dos seres humanos, experiências e culturas que não conhecemos e experiências que não conhecemos. Então, para mim, como criativa, acho que egoisticamente, quero conhecer as mentes, as experiências, a criação e a arte que vêm de uma população tão incomum e extraordinária de pessoas. Por isso, acho que qualquer pessoa que esteja em nosso ramo de atividade, deve pensar que isso não é apenas uma coisa boa a se fazer, é uma coisa inteligente a se fazer.

WAK: É disso que realmente precisamos, da inteligência deste mundo.

AJ: E mesmo assim, apenas criativamente, precisamos de novas vozes, precisamos de novas artes, precisamos de novas inspirações. Então, mesmo que alguém não estivesse olhando para isso como algo que é, é como uma forma de arte. Precisamos das vozes de nosso tempo e precisamos entender sobre coisas que não conhecemos e precisamos de muitas, muitas vozes extraordinárias. Então, acho que você está ajudando a abrir essas portas e continua a apresentar outras pessoas e a trabalhar, e espero que possamos trabalhar juntas, para continuar a apoiar outras pessoas que fazem esse trabalho, para atuar com elas e criar com elas.

WAK: Não, eu acho que essa é realmente minha responsabilidade agora, porque já passei por isso, sabe, já estive em um lugar em que, em algum momento, quis quebrar minha câmera, porque senti que não havia sentido nisso. E já estive em outros lugares em que senti que fazer esses filmes e esse tipo de coisa, mudou muito a vida de outras pessoas. E, com isso, sinto-me responsável por todas as outras pessoas que conheço. Elas estão trabalhando e se esforçando muito para contar suas histórias ou as histórias de outras pessoas. E eu sei que, para mim, as pessoas me veem como: "Eu consegui me destacar dessa forma, mas não foi fácil. E, à medida que fui me destacando, me senti mais privilegiada e mais capaz de erguer minha voz e defender as pessoas do nosso setor, para que elas se conscientizem disso, mas também defender outros refugiados e outras pessoas que sentem que querem quebrar suas câmeras hoje", sabe? Mas eu só quero lhes dizer: não façam isso. Tenham paciência e continuem tentando. Não estou dizendo que é fácil, e não estou dizendo que sempre será como queremos, mas continuem tentando. Essa é a única maneira de sermos semelhantes e de sobrevivermos a essas dificuldades. Então, sim, espero ver mais, muito mais filmes e muito mais pessoas, com uma nova perspectiva, com algo que não conseguimos entender, mas esperamos entender por meio de histórias e olhos de outras pessoas.

AJ: Sem dúvida, e quanto ao seu ponto de vista, não são apenas histórias sobre ser refugiado, vítima ou super-herói, como você disse, que as pessoas dizem. Eu não gosto da expressão, como quando falam sobreviventes, porque acho que, bem, você sabe, parte disso é que, todo mundo ainda está sobrevivendo, ainda está sobrevivendo a uma coisa, não há fim para isso. E algumas pessoas, eu acho, dizem isso, porque se sentem melhores pelo fato de alguém ter sobrevivido, mas é o início de uma vida de cuidados e ainda há muito, mas sim, as outras histórias, as histórias de cultura, as histórias de amor, as histórias de família, tudo isso eu anseio. É muito empolgante pensar em tudo o que pode surgir criativamente. E sim, eu sei que há tanta coisa, não sei se você quer mencionar ou falar sobre isso, mas há tanta coisa acontecendo na Síria no momento e muitas pessoas, por causa de outros conflitos no mundo, não estão cientes de tudo o que está acontecendo e dos bombardeios até hoje.

WAK: Sim, exatamente. Quero dizer, as pessoas olham para isso de uma forma e agora, que já se passou cinco anos e o filme foi lançado, as pessoas me dizem: "Ah, estamos tão felizes por você ter sobrevivido, estamos felizes por ter terminado". E eu digo: "Não, não acabou. Literalmente, enquanto conversamos neste momento, já se passaram 13 anos desde o início da revolução síria, que foi o melhor momento de nossas vidas, mas tudo aconteceu depois e toda a violência, todos esses crimes de guerra que eu e outras pessoas testemunhamos, ainda estão acontecendo. 

Desde o dia 3 de outubro deste ano, há uma nova onda de ataques a Alepo, a última área remanescente fora do controle do regime, onde vivem cerca de quatro milhões de sírios deslocados internamente. E essas pessoas, como algumas delas que conheço, estavam conosco no hospital quando estávamos lá. E essas pessoas ainda estão sendo ameaçadas de serem mortas ou deslocadas repetidas vezes. Portanto, ainda não acabou. Assad foi convidado este mês para participar da COP 28, para falar sobre a proteção da Terra e do meio ambiente. E, politicamente, é a normalização, a tentativa de apagar tudo o que aconteceu, como se nunca tivesse acontecido, e, como todos os refugiados sírios ao redor do mundo, acho que nos sentimos realmente ameaçados, não apenas porque não podemos voltar para casa hoje. Mas porque sentimos, que tudo o que testemunhamos, é como se nunca tivesse acontecido e que alguns países estão totalmente dispostos a esquecer isso e seguir em frente. Portanto, há muita coisa acontecendo.

AJ: É verdade. Acho que essa é a maior e mais desanimadora das coisas, acho que nós, ou pelo menos eu achava, há 20 anos, quando comecei a trabalhar internacionalmente, que havia uma ideia estranha de caras legais, sabe, uma ideia de determinados países ou povos, talvez fosse um resquício da Segunda Guerra Mundial. Eu achava que isso era como, para que as linhas ficassem mais claras e haveria essas metas de direitos humanos estabelecidas e haveria coisas a serem defendidas e, se essas coisas não fossem feitas, haveria resistência. Eu realmente achava que era isso, eu até achava que era isso que as Nações Unidas eram. Eu achava que, tudo bem, havia algumas linhas na areia. Há algum entendimento e vamos crescer e lutar por melhorias nessas áreas e observar e entender cada vez mais, como isso simplesmente não é assim, o mundo não é assim, esses são os direitos humanos, são direitos humanos às vezes para essas pessoas, talvez às vezes para essas pessoas, nunca para essas pessoas. E ajuda alimentar, 6% para essas pessoas, 50% para essas pessoas. E a justiça para essas pessoas, mas não para essas pessoas, a responsabilização por esse crime, mas não por aquele crime, se houver interesse comercial. E essa é realmente a situação desagradável de grande parte do mundo, da qual estamos nos conscientizando cada vez mais em praticamente todos os países. Quero dizer, não conheço nenhum país que esteja livre disso e que esteja disposto a manter uma linha, de fato, consistente em nome dos direitos humanos e das leis, isso é realmente desanimador e perturbador.

WAK: Sei que talvez eu não seja a primeira pessoa a lhe dizer isso, mas como alguém que testemunhou crimes de guerra com meus próprios olhos. E já vi governos, políticos e tomadores de decisão, fazendo declarações e falando sobre coisas e se encontrando cara a cara com as pessoas. Eles nos dizem algo e depois vão embora e pronto. Como se aquele fosse outro arquivo ou reunião que eles tivessem, como nas 57 reuniões que tiveram naquele dia. E nada mudou e nada muda. Portanto, há muito tempo perdi a esperança nos governos, nas políticas e nos tomadores de decisão. Ao mesmo tempo, ainda mantenho muita esperança nas pessoas, porque acho que essa é a minha única maneira de sobreviver e continuar a fazer o que estou fazendo e encontrar um sentido para a minha vida. Além disso, acho que o que descobri recentemente, e ainda estou explorando isso, não é nem uma ideia pronta para mim, nem uma crença. Mas comecei a perceber que talvez o que esteja realmente errado, seja o próprio sistema, o sistema inteiro. Não se trata deste ou daquele governo. 

Você está me ouvindo?

AJ: Sim

WAK: Oh, desculpe. Não sei por que não consigo ver você.

AJ: OK

WAK: Me desculpe. Não sei o que aconteceu.

Continuando: Então, não é como se ainda não fosse uma crença, mas é algo como se todo o sistema estivesse errado. E, novamente, não se trata de pessoas boas e pessoas ruins. As mesmas pessoas boas, podem ser ruins em conversas diferentes.

AJ: Às vezes, isso pode ser pior, porque há uma apresentação de algo e, portanto, é ainda mais perturbador, depositar sua fé ou alguém se posicionar como líder em direitos humanos ou uma democracia ou um cara legal, quando eles não mantêm a linha, podendo lutar, mas não lutam. Acho que o sistema é muito, sabe, acho que na minha cabeça, nós, muitos de nós, fomos criados com essa ideia de que o colonialismo foi algo que aconteceu e que, de alguma forma, acabou, mas não acabou.

WAK: Sim

AJ: E, as atitudes, o controle e o abuso do controle dos países em desenvolvimento e de outros países, talvez estejam piores do que nunca, na busca por recursos, na desonestidade e na disposição de fazer acordos com outros, com os interesses comerciais, até mesmo com as Nações Unidas e a forma como elas são organizadas e quem tem o poder de veto final. Sempre foi assim. Acho que não foi apresentado como algo diferente, e ainda acho que estou feliz que ele esteja lá, para algum alívio emergencial, mas, além disso, e até mesmo esse alívio emergencial pode ser vetado por um país, com interesses comerciais ou quaisquer outros interesses.

WAK: Ou pelo país que está bombardeando.

AJ: Sim, ou pelos país que está bombardeando. O fato de você realmente ter, quero dizer, em que ponto, e acho que, sabe, não faz muito sentido nem mesmo gritar sobre isso ou discutir os aspectos negativos de tantas coisas, porque ainda não há outra, não há exatamente isso. Mas, como você, acredito que a resposta está nas pessoas, nas massas de pessoas. E na história, sempre vimos que, às vezes, o que está quebrado, tem que se quebrar completamente, para esse outro renasça. E muitas vezes são os povos do mundo que não conseguem mais viver de uma determinada maneira. E é preciso que haja um reinício. Tem de haver um novo caminho a seguir. E ele deve ser construído pelas pessoas que querem viver em paz com suas famílias, em segurança e ter um futuro para seus filhos. Por isso, temos fé.

WAK: É por isso que estamos aqui hoje.

AJ: Sim.

WAK: Estou ciente do horário, então não sei, talvez você tenha que sair?

AJ: Provavelmente em breve, mas.

WAK: Posso lhe fazer uma pergunta?

AJ: Sempre, qualquer coisa.

WAK: Certo, quando você assistiu à última versão do We Dare to Dream, ou talvez antes disso, por que decidiu entrar para a equipe?

AJ: É uma boa pergunta. Acho que, como mencionei antes, eu sempre vi que nunca fui capaz de expressar o que sinto, quando viajo pelo mundo e conheço pessoas do mundo todo e vejo essa humanidade e essa união, essa compreensão da humanidade compartilhada e das pessoas. E, como você mencionou, não se trata de super-heróis ou de algo perfeito ou de vítimas, mas de pessoas reais, sendo extraordinárias, porque são apenas humanas, tentando, lutando, conectadas, abertas e honestas. Assim, quando assisti ao filme, senti que era a primeira vez que realmente via, de várias maneiras, uma representação diferente de um refugiado, e me senti próximo a eles. Eu me senti como uma amiga, assim como vocês são amigos. Eu me senti assim. E saí de lá, sentindo que todas essas pessoas poderiam ser minhas amigas. São pessoas que conheci um pouco e pelas quais torço. E, nesse sentido, há algo tão natural nisso e na maneira como você fez isso, acho que fará com que as pessoas aprendam sobre isso, e, com sorte, saiam sentindo que esse é o potencial do mundo em que podemos viver, que essa é a maneira como podemos aprender sobre, você sabe, nos conectar uns com os outros. É assim que pode ser. É assim que podemos ser. Então, isso me deu esperança, e isso é algo que eu não costumo dizer, porque soa um pouco clichê, algo me dá esperança e isso lhe dá esperança, mas esse me deu esperança e me deixou feliz.

WAK: Sim, é realmente, quero dizer, para mim, uma das minhas amigas que estava conosco em Alepo, eu a convidei para assistir a uma versão inicial desse filme e eu disse que era um filme muito edificante, muito esperançoso, incrível, sabe, é tão assim, e ela saiu chorando.

AJ: Bem, sim.

WAK: E eu disse, tipo, sim, quer dizer, eu chorei, mas pensei que eu era muito emotiva, sabe. E ela disse: "Não, é incrível, mas ainda assim muito emotivo". E o elemento esperança nesse filme é como, você pode senti-lo e vivê-lo com eles. E isso é incrível porque, sim, acho que é disso que realmente precisamos em nossas vidas agora.

AJ: Bem, e acho que o que você vê, é a esperança real, porque há uma diferença entre algo que está além e é apenas uma fantasia ou sonho. Mas há outra que é como, estar no dia a dia, dar o melhor de si, lutar por algo, representar a si mesmo, conhecer a si mesmo, insistir e não desistir, ou sentir vontade de desistir, mas apenas ser.

WAK: Sim, sim, incrível, sabe, isso é o que realmente sempre me estressou como alguém que já passou por muita coisa. Quando as pessoas dizem que você é capaz, esses clichês de algumas frases como. Não desista. Apenas continue. Você é capaz. Você pode conseguir. Às vezes, é como se disséssemos: "Não, não há problema em dizer que não podemos fazer isso ou que estamos muito cansados ou que não estamos dispostos a fazer isso hoje ou talvez nesta semana ou talvez neste ano". Não sei. Mas, sim, acho que o que aprendi com isso, foi, essa experiência real de criar esperança, viver com esperança e, sim, desistir às vezes. Não tem problema.

AJ: Acho que é porque, você ainda pode estar cansado e não ter a força com você todos os dias, mas você não se tornou a escuridão. Você não se tornou isso, certo? Isso é uma vitória. Essa talvez seja a maior vitória, você sabe, essa ideia de que se deve ter uma determinada aparência. A vitória ainda é, se levantar de manhã e não odiar nem culpar o próximo por tudo o que você sofreu, certo? A maior vitória é levantar e ainda ser capaz de sorrir para seus filhos e continuar vivendo. E o que é viver? E isso talvez seja algo que eu também tenha aprendido quando era muito jovem e conhecia famílias de refugiados e pessoas que passaram por mais coisas do que eu jamais poderia imaginar ou do que qualquer pessoa que eu conhecesse, já tenha passado. E elas tinham mais senso de vida, estavam mais presentes e se sentiam mais honestas. Assim como isso é para mim, acho que é por isso que estamos todos aqui, certo? Estamos todos aqui para estarmos conectados uns aos outros e sermos humanos e tentarmos realmente entender o que é isso, não para ganhar coisas e prêmios. Sabe.

WAK: Sim.

AJ: Sim. Portanto, estou ansiosa para encontrar coisas novas para trabalhar.

WAK: Nós adorariamos.

AJ: Sim, com certeza. Sinto muito, não pude estar lá. Eu realmente gostaria de não estar ocupada. Então eu poderia dar uma passada por lá. Mas mal posso esperar para ver fotos e vídeos.

WAK: Você está muito bem aqui. E muito bem.

AJ: Espero que possamos exibir também em Nova York e Los Angeles, e que vocês continuem a me visitar.

WAK: Claro, não. E obrigado por tudo.

AJ: Claro, claro, obrigado por fazer parte disso. É muito especial fazer parte disso.

WAK: Obrigada.

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