Angelina Jolie concede entrevista para o jornal The Guardian

Em uma tarde inesquecível em janeiro do ano passado em um set de filmagens situado na zona rural do Camboja, um morador local se aproximou de Angelina Jolie com um grande balde de sanguessugas. Jolie olha para dentro do balde e pega uma das criaturas que se contorcia, estudou-a por um minuto e a colocou no caminho para uma de suas veias proeminentes na parte de trás de sua mão. A criatura se fixa e começou a sugar o seu sangue, então ela caminha até a atriz principal de seu filme Sareum Srey Moch, de nove anos, que estava sentado em uma cadeira de lona na sombra de uma árvore.

"É assim que é uma de verdade", disse ela. Sareum enrugou o nariz e olhou para a sanguessuga. "Será que ela chupou o seu sangue?" perguntou a menina. O filho de 13 anos (completados a pouco mais de 1 mês) de Jolie, Pax, com muletas depois de quebrar seu pé em um acidente de jet-ski, caminhou com sua câmera para olhar mais de perto.

"Sim, isso suga o seu sangue," Jolie respondeu depois de uma ligeira hesitação, já resignada com a probabilidade de que sanguessugas de verdade poderia ser um passo muito longo para esta jovem atriz. Ela então ordenou que voltassem ao plano A, uma caixa cheia de dezenas de sanguessugas falsas feitas de vinil preto presas a um suporte de papelão como se fossem espécimes biológicas. A equipe experimentou colar vermes de plástico de formas diferentes na perna de Sareum até que a jovem atriz e Jolie concordaram que parecia ser o certo. A atriz e a diretora se entreolharam e a garota voltou para o campo de arroz para sua próxima cena.

Sareum interpreta o papel de Loung Ung, que tinha apenas cinco anos quando o Khmer Rouge, como o partido comunista do Camboja era conhecido, invadiu a capital Phnom Penh, em 1975. Ao longo dos próximos quatro anos, eles expulsaram sua população para a zona rural, executando todos aqueles que eram tidos como inimigos de classe. Mais de dois milhões, de um total de sete milhões de pessoas, foram mortas. O pai e a mãe e duas das irmãs de Ung foram executadas.

Aos nove anos, Ung escapou para a Tailândia com seu irmão mais velho, eles chegaram aos EUA como refugiados logo depois, com a ajuda de uma fundação religiosa. Aos 30 anos, ela escreveu sua autobiografia, "Primeiro eles mataram o meu pai". No set, Loung Ung, agora com 46 anos, assistiu as gravações em uma tela junto de Jolie, em uma pequena barraca preta, ao lado de um pequeno curral onde o gado estava sendo mantido para as cenas da fazenda. As duas mulheres são amigas há 16 anos, foi Ung, quem co-escreveu o roteiro, ela trabalhou no filme como consultora.

Jolie data o início de seu envolvimento em questões humanitárias, na sua experiência de fazer o filme de ação, Lara Croft: Tomb Raider, em 2000. Naquele filme, que foi lançado em 2001, o Camboja não era mais do que um pano de fundo exótico para as gravações e armadilhas de minas anti-pessoal plantadas em todo o país na década de 1970 que ainda estavam funcionando. Havia uma geração de órfãos, em seus vinte anos, e um país ainda esmagado pela pobreza, autoritarismo e o trauma. Logo após a filmagem de Tomb Raider, Jolie voltou como voluntária pela agência da ONU para refugiados, o ACNUR, e visitou projetos de remoção de minas. Ela começou a dar grandes quantidades de dinheiro para o ACNUR e se tornou uma embaixadora da boa vontade para a organização.

Jolie estava planejando voltar ao Camboja com o ACNUR mais tarde em 2001, quando a autobiografia de Ung chegou até sua mesa. Ung naquela época estava trabalhando para uma organização de veteranos norte americanos da guerra do Vietnã,  que ajudava vítimas de minas terrestres na região. Seu escritório enviou o livro a Jolie com a chance de divulgar sua causa. Assim que Jolie leu o livro, ela ligou para Ung. Ela descobriu que as duas iriam para o Camboja ao mesmo tempo. Jolie então convidou Ung para se juntar a ela em um passeio de moto pela paisagem acidentada em torno da província de Battambang, no noroeste do país.

"Nós viajamos para algumas áreas muito remotas - não havia estradas, hotéis ou restaurantes", disse Ung. "Nós paramos na beira da estrada e comemos nas casas das pessoas. Eu fiquei tão impressionada porque Angie não viajou com uma comitiva. Ela comia o que lhe davam, ela pendurava sua rede onde dava e ficava suja de lama por conta das chuvas torrenciais. "

Ung ensinou a Jolie as habilidades de sobrevivência aprendidas em campo: como verificar se há sanguessugas na água ou como pegar rãs. "Nós rapidamente nos tornamos amigas", disse Jolie. "Na ocasião, nós fomos pegas por uma tempestade e ficamos acordadas à noite sentadas em redes na chuva, o que é muito divertido nas primeiras horas e depois é frio e implacável".

Um dia, Jolie passou o tempo jogando e falando com crianças em uma escola em Battambang. Ela não tinha filhos na época e diz que foi nesse momento que ela decidiu adotar uma criança do país. "Perguntei a Loung, o que ela achava, sendo uma cambojana, e órfã. E ela foi muito favorável ", disse Jolie. Angelina adotou Maddox Chivan, com sete meses de idade, de um orfanato de Battambang um ano depois, em março de 2002. "E Loung esteve em sua vida desde então ", disse ela.

Jolie e Ung começaram a adaptar o livro, mas depois arquivaram o projeto em parte porque Jolie estava ocupada com outros filmes e porque nem achava que a atmosfera política no Camboja era propícia para fazer um filme sobre a história recente. No entanto, no ano passado, Maddox, aos 14 anos, as persuadiu a fazer o filme. "Foi ele quem nos chamou e disse que estava pronto e queria trabalhar nele, e ele realmente o fez. Ele leu o roteiro, ajudou com notas, e estava nas reuniões de produção ", disse Jolie.

Em 2011, Jolie fez um filme sobre o conflito bósnio, "Na Terra de Amor e Ódio", para o qual o elenco foi inteiramente composto de pessoas da antiga Iugoslávia. A adaptação para o cinema de "Primeira Eles mataram meu pai" também usa apenas atores do Camboja, e a língua falada é Khmer, com trechos ocasionais de francês, a língua imperial da Indochina francesa, dos quais o Camboja fez parte até 1950.

"Quando eu disse que queria fazer este filme, e queria filma-lo no Camboja, todos disseram: você não pode fazê-lo no Camboja. Você tem que filma-lo na Tailândia, como o longa The Killing Fields", disse Jolie.

O filme de Roland Joffé de 1984 foi a maior tentativa de Hollywood em abordar o genocídio cambojano. Ele conta a história de um fotojornalista cambojano em busca de seus colegas, após terem sumido repentinamente, e fornecem um ponto de vista ocidental para o público. O filme de Jolie não faz tais concessões. Não há personagens brancos para explicar eventos em inglês e ela é bastante clara que o público principal é o público cambojano. O elenco e a equipe são cambojanos.

O filme será lançado em todo o Camboja em meados do próximo mês, sete meses antes de seu lançamento nos EUA.

O trabalho humanitário de Jolie marca o terceiro ato de sua carreira. Embora não seja a primeira atriz a tomar esse caminho, ela se jogou profundamente nesse papel. "Estou fazendo menos filme agora", disse ela. "Não estou me afastando completamente disso tudo, mas idealmente, pretendo fazer mais projetos como este, onde você pode reunir ao mesmo tempo, tudo aquilo que importa para você."

Enquanto filmava cenas que aconteciam num acampamento do Khmer vermelho retratando crianças que eram obrigadas a trabalhar, Jolie - descalça, vestindo uma camiseta e um chapéu de palha grande - andou a passos largos pelo set empoeirado depois de cada tomada. Era o meio da manhã e o calor ainda era suportável. A atmosfera era de uma família extensa, ocupada, estendida, particularmente durante as refeições comuns, feitas sob a lona. Jolie estava relaxada e feliz, rindo e brincando.

Ela estava claramente em seu ambiente preferido, no trabalho, mas cercado por amigos próximos e familiares, e protegida - pelo isolamento da área e pelos seguranças do set - da curiosidade do mundo sobre sua vida privada. Ela disse mais tarde naquele dia, que uma das coisas que mais gostava quando estava no Camboja, era que podia caminhar pelos mercados locais e as pessoas que a reconheciam, a conheciam por sua filantropia. "Talvez eles tenham visto Tomb Raider, mas eles realmente não assistem a muitos filmes", disse ela. "Para eles, eu realmente sou aquela senhora estranha e agradável que gosta do Camboja. Se eu for ao mercado, eles me reconhecem - mas eles não me incomodam. Eles dizem oi.

O set, formado por um conjunto de cabanas abertas de madeira, foi construído em torno de uma grande área de terra, sinalizada com bandeiras vermelhas. Longas filas de crianças usando roupas pretos e bandanas vermelhas, andavam para cima e para baixo, dentro e fora do campo de visão da câmera. Outros colhiam arroz e eram gravados por uma câmera presa em um drone que pairava acima deles.


Na maioria das vezes, o papel de Ung era como uma figura de titia para os jovens atores, particularmente Sareum (que ela chamou de "Mini-me"), distribuindo garrafas de água, dando conselhos e passando horas com eles na barraca de Lego. Lego é amplamente desconhecido no Camboja por causa das rígidas restrições impostas ao país, mas Jolie trouxe uma grande quantidade de tijolos de plásticos com ela para manter as crianças do elenco entretidas.

Para Ung, a barraca de Lego simbolizava a derradeira derrota do Khmer Vermelho. "Lego é brilhantemente colorido, é divertido e feito para as horas de relaxamento. No acampamento real daquela época, você seria espancado ou sofreria coisas piores por demonstrar preguiça", disse Ung. Sua irmã, Chuo, testemunhou um menino sendo espancado até a morte por guardas do campo que disseram que ele estava sem trabalhar.

Em solidariedade com as meninas do elenco, que tinham que usar os cabelos curtos, medida imposta pelo Khmer Vermelho, Ung cortou os cabelos e usava roupas pretas. Nos intervalos das filmagens, ela e Sareum andaram pelo set como se fossem duas versões da mesma pessoa, com 40 anos de diferença.

"Quando eu conheci a Mini-me (versão pequena de si mesma), e estávamos tentando nos conhecer. Caminhávamos juntas como dois galos ", disse ela. Ela ficava  constantemente surpresa em como ambas são iguais. "Mini-me fazia algo e eu olhava para Angie e dizia: eu faço isso!"

Ao escrever sua autobiografia, Ung procurou se lembrar do que sentiu ao experimentar a revolta, o caos e o horror da vida em um campo de trabalho infantil. A jovem Ung só tinha uma compreensão fragmentada dos acontecimentos que se desenrolavam à sua volta. O filme procura fazer a mesma coisa -mostrar o conflito visto através dos olhos de uma menina. Para permitir que o público veja o mundo através dos olhos da jovem Ung, grande parte das gravações foram filmadas do seu ponto de vista, a quatro pés (122 centímetros) do chão com uma Steadicam (câmera presa a cabeça).

Conseguir a autêntica visão de uma criança foi definitivamente o desafio técnico do filme. "Ao filmar adultos você grava sobre o ombro e enquadra cada cena para que seja interessante", disse Jolie. "Mas com o POV, nos conseguimos concentrar o que Loung estava vendo naquele momento. Levou um tempo para todos, especialmente para os operadores de câmara, se acostumarem a não enquadrarem a cena como normalmente fariam. "Depois de uma mudança de última hora, Anthony Dod Mantle foi contratado como diretor de fotografia apenas alguns dias antes das filmagens começarem em novembro de 2015.

"Eu me senti como um pacote da Cruz Vermelha sendo lançado para fora de um bombardeiro B52", disse Mantle. Ele é conhecido como um dos inovadores mais insistentes no negócio e ganhou um Oscar por seu trabalho em Slumdog Millionaire, longa de 2008 dirigido por Danny Boyle. "Eu e Angie estamos tentando desafiar um ao outro, para sermos radicais."

Assistir as lembranças da infância, ao ver o genocídio sendo encenado no set teve um efeito visceral em Ung. Depois de chegar aos Estados Unidos aos nove anos, Ung ficou assombrada pelos pesadelos recorrente de ser perseguida por soldados determinados a matá-la. Ela acordava exatamente quando seus perseguidores a agarravam. Ela sofreu o mesmo tormento noite após noite até finalmente, três anos mais tarde, em um sonho, ela ter conseguido atacar um dos seus perseguidores.

"No meu sonho, no qual eu me lembro muito vividamente, eu estava na América e ele estava me perseguindo, eu estava correndo, correndo e correndo. Entrei em uma casa e não havia armas lá, mas eu encontrei uma faca. Eu a agarrei e eu estava tentando cortar sua cabeça fora e era uma faca de manteiga. Eu tive que realmente cortá-lo, "Ung disse. "Isso foi quando eu tinha cerca de 12 ou 13 anos de idade."

Ung é curta e grossa, seu sorriso é frequente e sua inclinação para encontrar humor em quase toda situação está em desacordo com a escuridão de sua história de vida. Ela se descreve como uma pessoa feliz e com força de vontade. Quando jovem, ela resolveu que nem seus pais, nem suas duas irmãs, iriam querer vê-la passando o resto da vida, consumida pela miséria. "Então, eu decidi propositadamente que não iria fazer isso, e a grande coisa sobre hábitos, é que se você fizer isso por tempo suficiente, ele se torna permanente."

Até mesmo na escolha de sua carreira, Ung encontrar prazer. Ela e seu marido, Mark Priemer, criaram uma micro cervejaria porque não conseguiam obter cerveja decente na América. "Eu pensei que se eu morrer amanhã, eu não quero morrer bebendo água efervescente", disse Ung. O casal agora possui duas cervejarias e três restaurantes em Cleveland, Ohio.

"É uma daquelas coisas que sua amiga lhe conta, e você pensa: Oh, o que ela está fazendo?", Lembrou Jolie. "E então eu nem perguntei sobre isso por alguns anos porque eu estava preocupada. Nós conversamos sobre outras coisas como livros, e quando eu vejo, ela tem um número louco de funcionários e ela é realmente bem sucedida. É a cerveja favorita de Brad, então eu tenho que tê-la em minha casa o tempo todo. " (Durante as filmagens, Brad Pitt ficou a maior parte do tempo em Siem Reap, a cidade resort perto das ruínas do templo de Angkor Wat, ajudando a cuidar dos filhos do casal, o que acabou por ser os últimos meses de seu casamento.)

Mas agora que Ung estava de volta ao Camboja por um longo período, com seu cabelo cortado curto e vestindo roupas pretas novamente depois de anos usando as cores mais brilhantes que ela poderia encontrar, seus pesadelos estavam retornando.

Ao longo das gravações, ela tinha se entristecido muitas vezes no set. "As pessoas sempre me perguntam sobre a guerra, como sobrevivente", disse ela. "Eles sempre perguntam sobre o bombardeio, as mortes, os soldados. E eu sempre quis dizer que sim, que foram momentos difíceis e horríveis, mas tendo sido separada da minha irmã, e vendo meus pais sendo afastados um do outro, e ter sido afastada de meus irmãos e irmãs, isso foi brutal.

"Espero que as pessoas vejam não apenas o horror da guerra, mas o amor que é necessário para sobreviver".

O Khmer Vermelho cresceu a partir da agitação comunista no sudeste da Ásia que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. O partido comunista cambojano foi assumido na década de 1960 por um grupo de ideólogos de linha dura que estudaram em Paris, liderado por um engenheiro de rádio chamado Saloth Sar - um homem que mais tarde adotaria o nome de guerra de Pol Pot. A rebelião comunista foi tomada pelo tenente-general Lon Nol, que expulsou o líder pós-independência do país, o príncipe Sihanouk, em 1970, e contra-atacou a insurgência comunista com o forte apoio dos EUA, que estava realizando uma campanha secreta e devastadora na fronteira oriental do país destinada às bases Viet Cong.

Na sequencia de abertura, o filme de Jolie usa notícias da época para sugerir que a campanha de bombardeio dos EUA aumentou o apoio ao Khmer Vermelho e contribuiu para o eventual colapso das forças de Lon Nol em 1975. O pai de Loung Ung era um oficial da polícia militar recrutado para o exercito de Lon Nol, e uma das prioridades na lista de alvos do Khmer Vermelho. Aqueles marcados para morrer incluiam qualquer um educado, e corrompido por caminhos ocidentais. Através do assassinato em massa, o Khmer Vermelho pretendia reiniciar a civilização e voltar o relógio para o "Ano Zero".

No ano passado, enquanto Jolie estava gravando, eu visitei o túmulo de Pol Pot - o homem que presidiu os campos de extermínio. O local abandonado e desamparado fica em Anlong Veng, na fronteira ocidental do Camboja com a Tailândia, a localização do último confronto do Khmer Vermelho contra as forças vietnamitas. Ele morreu em abril de 1998 , aos 73 anos , à espera de um carro que supostamente o levaria para fora do país para comparecer perante a um tribunal internacional. De acordo com o relato oficial, a causa da morte foi insuficiência cardíaca, embora outras versões apontam para suicídio ou assassinato.

Um memorial improvisado encontra-se no local onde seu corpo foi cremado, não sendo mais do que uma pedaço de metal ondulado sustentada por dois postes. Um aviso azul desbotado apela aos visitantes, "preservar este local histórico", e não foi nem vandalizado e nem mantido. Gramas secas cresceram em torno dele.

Os únicos sinais da presença humana recente ali, eram a de um punhado pequeno de lótus murchos, um par de velas vermelhas e uma pequena caixa fechada de lata vermelha. De acordo com um vigia, o único visitante regular é um empresário tailandês e jogador, a quem Pol Pot apareceu em um sonho há 10 anos e disse-lhe os números da loteria vencedora. O vigia disse que o jogador vem uma vez por mês, durante uma folga de um cassino novo construído próximo da fronteira, para deixar flores e fruta. Mais jogadores tailandeses seguiram seu exemplo, esperando terem  sua sorte, e recentemente as visitas chegaram a 50 pessoas por mês. Com um tráfego em ascensão, uma nova cabine de concreto está prevista para o vigia.

Anlong Veng foi um reduto do Khmer Vermelho por mais de uma década. A maioria dos residentes são ex-funcionários do regime ou seus descendentes, mas os vestígios de Kampuchea - como o Khmer Vermelho renomeou o Camboja- parecem não excitar nenhum interesse local hoje. A poucos quilômetros do túmulo negligenciado, encontra-se a casa de Ta Mok, o reforço militar de Pol Pot, e mais tarde seu rival, carcereiro e possivelmente seu assassino. A escada de concreto da casa, leva para fora em um lago artificial que Ta Mok tinha construído, e ele decorou as paredes com murais dos templos de Angkor Wat. Os murais estão agora cobertos de graffiti rabiscado por amantes inspirados pelas vistas românticas.


O governo local corajosamente anuncia o lugar para turistas, e um punhado deles passa por lá, a cada dia. Kearn Sarin, um homem robusto usando um casaco militar e um lenço xadrez Khmer em torno de um boné verde-oliva, trabalha lá como um guia. Kearn foi guarda-costas de Ta Mok até que ele foi preso em 1999. Ta Mok morreu em 2006 aguardando julgamento por genocídio e crimes contra a humanidade.

Kearn continua a ser um firme defensor do Khmer Vermelho, desde que se juntou a eles pela primeira vez quando era um adolescente. Ele tinha ouvido falar do livro de Ung e do filme, mas o descartou como sendo "propaganda de uma pessoa". "Ele não conta as boas ações feitas pelo Khmer Vermelho ", disse ele. "Em Kampuchea, não havia ricos ou pobres. Todos estavam no mesmo nível simples. Agora a diferença entre ricos e pobres é grande novamente. "

Há vários santuários de pequena escala e memoriais do genocídio em torno Camboja, mas há apenas um museu da guerra, em Siem Reap , onde as carrocerias dos carros blindados da era soviética em ruínas, tanques e helicópteros encontram-se sob um bosque de árvores de manga. Em ambos os lados, há armas velhas empilhadas em estandes de madeira e um relato bastante irregular do longo pesadelo do país. Atrás de um painel de vidro, um resumo de uma página do regime do Khmer Vermelho não faz menção aos campos de morte e aos dois milhões de mortos, apenas "uma tentativa radical de engenharia social". Outras fotos em exibição são tiros de propaganda Khmer Vermelho, a maioria delas rotulados: "tropas Khmer Vermelho indo de lugar para lugar."

Muito poucos cambojanos vêm ao museu. "As pessoas não falam sobre a guerra. Elas não querem ", disse Moun Sinath, que trabalha como guia no museu. "É difícil falar sobre porque há alguns dos Khmer Vermelhos que ainda dirigem o governo".

Um estrangeiro que vem ao Camboja para fazer um filme sobre um episódio terrivelmente doloroso na história do país enfrenta uma tarefa delicada. Cada passo ao longo do caminho, desde a obtenção de permissão para filmar, até a organização de exibições de filmes, exige uma negociação paciente. Não são apenas muitos ex-membros do Khmer Vermelho ainda em posições de influência, Jolie teve que navegar profundamente no ceticismo sobre estrangeiros em geral. Como explica Youk Chhang, diretor-executivo do Centro de Documentação do Camboja (uma ONG dedicada à pesquisa da história do Camboja sob o Khmer Vermelho), entre a ocupação pelos franceses, a invasão posterior pelos vietnamitas e repetidos ataques dos EUA, há muito para os cambojanos serem cauteloso.

Chhang é um defensor do filme de Jolie, mas ele disse que havia algumas pessoas, incluindo os jovens cineastas do país, que sentiam que estavam melhor posicionados para contar a história definidora da vida de seus pais. "É preciso entender que a desconfiança cambojana dos estrangeiros tem raízes profundas", disse ele.

No entanto, Jolie é uma cidadã cambojana - ela foi premiada com a honra em 2005, em reconhecimento ao seu trabalho de conservação - e ela tem um filho cambojano. Além disso, ela assumiu o projeto porque parte da equipe do filme é cambojana, como Ung, seu co-produtor Rithy Panh, que é um cineasta internacionalmente célebre por mérito próprio, e um elenco todo cambojano.

"Porque eu fiz isso em parceria com Loung e Rithy, realmente não fui eu quem os liderou. Nunca foi. E todos os dias no set, realmente não era. Eu sempre tinha que me submeter ao povo cambojano que estava lá ", disse Jolie. - Porque não é a minha história.

Essas parcerias e as habilidades diplomáticas de Jolie também ajudaram a facilitar o caminho com o governo em Phnom Penh.

A ambivalência tranquila do Camboja sobre seu próprio genocídio vai para o coração do estabelecimento. Hun Sen, primeiro-ministro do Camboja desde 1985, era um comandante do batalhão no Khmer Vermelho, mas fugiu com sua unidade para o Vietnã para escapar de uma expurgação de partido em 1977. Ele foi posteriormente comandante de rebeldes cambojanos que faziam parte da força de invasão vietnamita dois anos mais tarde, e era originalmente parte do governo criado sob a ocupação vietnamita. Desde então, ele presidiu uma semi-democracia administrada, na qual as eleições são realizadas, mas com uma mídia cuidadosamente controlada e alegações generalizadas de manipulação de votos.

Um tribunal conjunto cambojano foi criado em 2006 para tentar sobreviver aos líderes do Khmer Vermelho, mas o governo de Hun Sen limitou seu alcance. Apenas cinco ex-líderes foram indiciados - três foram condenados e dois morreram durante os julgamentos. Um debate público mais amplo sobre o genocídio foi desencorajado pelo governo até recentemente. Os fatos básicos do que aconteceu sob o regime do Khmer Vermelho só começaram a ser ensinados em escolas cambojanas há quatro anos. O filme de Jolie está sendo feito num momento de transformação.

"Uma década atrás, para falar sobre certas coisas me sentia muito diferente do que hoje. Eu não sei o que isso é atribuído. Pode ser porque é uma certa mudança de geração ", disse Jolie.

"Mas eu queria saber se haveria restrições sobre a realização do filme. Me perguntei se eles diriam: Você não pode fazer isso aqui, porque o país é muito sensível e não queremos ver isso nas ruas. Ou talvez alguém diria: "Oh, não foi tão ruim quanto isso - está fora de proporção"; Ou algum tipo de conselho para diminuir o tom. Mas, pelo contrário, tivemos incentivo para ser o mais preciso possível. "

A estreia mundial do longa será realizada em Siem Reap em 18 de fevereiro, sete meses antes de seu lançamento global via Netflix. "Eu fui diretamente para a Netflix", disse Jolie, "porque eu quero fazer o tipo de filme onde eu não tenho que comprometer e colocar uma famosa atriz chinesa como mãe, ou fazer isso em uma língua diferente a fim de levar as pessoas aos cinemas no primeiro fim de semana ".

Depois que todas as cenas do acampamento de trabalho foram filmadas, a equipe teve que incendiar as cabanas de madeira para um dos momentos culminantes da história de Ung, um ataque contra o acampamento durante a ofensiva vietnamita de 1979. Especialistas em pirotecnia passaram uma tarde montando  queimadores e os telhados de palha das cabanas com combustível.

Havia apenas uma janela estreita para filmar uma longa cena de plano de seguimento após a jovem Ung entrar no meio das chama, e Jolie estava em sua tenda preta planejando-a. Ela tinha ficado extremamente doente na noite anterior e parecia frágil, mas insistiu que estava "estabilizada". A filmagem tinha apenas alguns "dias de seguro" para cobrir o custo excedentes, de modo que ninguém menos do que o diretor, podia se dar ao luxo de ficar doente por muito tempo. Outros membros da equipe tinham desmoronado ou sucumbido a alucinações ao tentar trabalhar doente.

Jolie estava tentando determinar se seria um morteiro ou um foguete que incendiaria o acampamento, e como cada um iria queimar. Uma complicação adicional foi o fato de que o fazendeiro local não queria nenhum dano feito à sua cabana de madeira. Um caminhão de bombeiros seria colocado nas proximidades caso fosse incendiado por faíscas dispersas.


À medida que a noite escurecia no set, as cabanas de madeira foram acesas, e Sareum, no papel da jovem Ung, foi filmada correndo pelo pátio cercado por chamas, chamando por sua irmã. Num campo próximo, as crianças fugiam das chamas, seguidas ruidosamente por um porco. Atores interpretando soldados Khmer Vermelho correram por um outro caminho através do campo aberto carregando AK-47s. Uma fileira de cadáveres de látex simulando pessoas mortas tinham sido alinhados sob uma árvore pronta para serem colocados em torno do campo de batalha.

Do lado de fora do campo, a maioria da equipe tinha parado para assistir as cabanas queimando em chamas. Brad Pitt, com boné e camiseta, veio com quatro filhos do casal.

É difícil prever qual será a resposta emocional dos cambojanos ao filme, mas para aqueles do elenco e da equipe com idades suficientes para se lembrar do Khmer Vermelho, o efeito foi devastador.

"Aqui todos passaram por isso. Todo mundo está a no mínimo 3 metros de alguém que já passou por isso. Eles estão se ajudando como sempre fizeram - disse Jolie. Antes do início das filmagens, ela tinha certeza de que havia uma enfermeira cambojana no set com a experiência de trabalhar com estresse pós-traumático.

"As pessoas eram tão mal tratadas e tão desumanizadas", disse o co-produtor Rithy Panh, "elas não tinham grande desejo de lembrar do que aconteceu, de falar sobre quando tiveram que comer raízes e insetos para sobreviver. E o que eles poderiam dizer? Estou sozinho, sobrevivi, mas não consegui salvar meus pais? Acho que esse longo silêncio é normal.

Panh tinha 11 anos em 1975. Ele também perdeu seus pais e irmãos e acabou em um campo de refugiados tailandês em 1979. De uma dúzia de casas fortes em Phnom Penh, quando a cidade caiu, só ele e uma irmã mais velha sobreviveram. Agora com 52 anos, Panh é um homem de voz suave, com cabeça redonda e uma barbicha protegida por um chapéu de abas largas. Ele estava sentado em uma mesa, em uma recriação de uma sala de aula Khmer Vermelho com um telhado de palha sem paredes.

Os documentários de Panh foram os primeiros a romper o silêncio cambojano. Em seu filme de 2003 sobre Tuol Sleng, o maior assassino das prisões do Khmer Vermelho, conhecido como S-21, mostra muitos ex-prisioneiro sobreviventes das prisões cambojanas, confrontando seus ex-carcereiros . Seus filmes ganharam prêmios no exterior, mas mal foram vistos no Camboja. "As pessoas estavam dizendo que eu deveria fazer filmes sobre como o país é bonito", disse ele. "Só os jovens vêem meus filmes."

"O filme que Angelina está fazendo é importante porque talvez permita que uma nova geração de jovens descubra o que aconteceu com seus avós. Não é a única solução. É apenas imagens, mas as torna capazes de enfrentar sua história e entender. "

Finalmente, Panh acrescentou, o filme demonstra a resiliência de seu país. "Eles não podiam nos destruir. Este ato criativo mostra que somos capazes de expressar nossa história. Há aqueles que dizem que depois de tudo o que aconteceu aqui, a poesia não é mais possível. Mas eu digo que precisamos de mais poesia. Precisamos de poesia, para a criação, para a imaginação, para permitir que as pessoas vejam através de tudo isso, e possam virar as costas e seguir em frente. "

Faltando um mês para a exibição do filme no Camboja, Jolie estava em casa na Califórnia, se preocupando com a complicação do que um "liberação geral" pode significar em um país em grande parte sem cinemas e uma população que não tem confrontado as realidades de seu genocídio.

"Há muitas exibições menores que vamos fazer, e eu estou mais animado com isso. Pode ser apenas uma tela e um projetor em um pequeno templo nas áreas mais remotas ", ela me disse em uma recente entrevista por telefone.

Se será possível mostrar esse filme em campo do Camboja, isso dependerá da disponibilidade de monges ou terapeutas para ajudar a organizarem as exibições e lidar com as consequências. Haverá tempo reservado para discussões após as exibições, e em alguns lugares Jolie planeja organizar reuniões na prefeitura na manhã seguinte, para que ela e o elenco possam responder a perguntas.

A julgar pela experiência de fazer o filme, a reação entre os cambojanos comuns será altamente carregada e emocional. Nos melhores casos, também será esperançoso.

"Eu tentei com muita dificuldade, fazer um filme que não é apenas sobre políticas, diplomacia e guerra", disse Jolie. "É um filme em seu núcleo, sobre o povo cambojano, família, amor e sobrevivência. Espero que haja um sentimento de orgulho do povo cambojano quando eles o assistirem, sobre como eles sobreviveram e quem eles são. "

PS: Peço por favor que ao lerem, caso encontrem algum erro de tradução (porque sempre acaba passando alguma coisa), me avisem, para que eu possa concertar, obrigado desde já.

Fonte: The Guardian

Comentários

Unknown disse…
Nossa louca para ver este filme parece ser uma história bem triste mas também bonita acho que vai ser uma história para mexer com nossos corações melhor a gente ir preparando os lenços kkkkkk Angelina já me surpreendeu no primeiro filme que ela fez não vai ser diferente dessa vez ela é ótimo tudo que faz merece todo sucesso do mundo.
Eduarda disse…
Porque a Angelina Ainda não tem uma estrela na calçada da fama??
O que precisa para merecer uma?
A calçada da fama funciona assim, qualquer pessoa do planeta pode indicar uma personalidade da musica, teatro ou cinema, para indicar alguém, basta preencher um formulário e enviar para o endereço que consta no próprio site da calçada da fama, que em inglês é Walk of Fame. Depois é feita uma votação entre os membros julgadores que eles tem lá, e as celebridades escolhidas são contatas e é oferecido a ela a oportunidade de estar entre os homenageados, é perguntado se elas aceitarem ou recusam a homenagem, se elas aceitarem, então elas tem que bancar os custos necessários para a confecção e manutenção da estrela, agora se eles se recusarem, então a próxima celebridade mais votada assume a posição dos desistentes.

Jolie não tem, talvez porque nunca tenha sido indicada, ou nunca ficou entre as finalistas, ou simplesmente porque se recusa a pagar por uma homenagem, eu acredito na ultima opção, mas não posso afirmar certeza.
Anônimo disse…
Ataaa, entendi!
Pode ser a última opção mesmo. Mas podemos juntar um grupo de faz e indicar ela!
Poderíamos sim, mas não precisa de um grupo, basta uma pessoa fazer isso, que a indicação já está valendo, ai dependerá deles escolherem ela e dela aceitar.