As muitas vidas de Angelina

A trajetória da atriz, contada pelo repórter Marcelo Bernardes, que já teve mais de dez encontros com ela. Desde a época em que o mundo não sabia quem era essa tal Jolie, que colecionava facas, gostava de drogas e levava uma vida punk, até hoje, quando o planeta e o repórter -que a princípio não fora enfeitiçado pela moça- se renderam a ela.

No começo de outubro, conduzi minha décima-primeira entrevista com Angelina Jolie quando nos encontramos no Waldorf-Astoria, em Nova York. Ela estava lá para promover o filme 'A Troca', que estreia no Brasil este mês. Acompanhando a atriz pela cidade, o parceiro Brad Pitt, com quem ela não é oficialmente casada, e a prole de seis filhos -Maddox, 7; Pax, 5; Zahara, 3; Shiloh, 2; e os gêmeos Knox Léon e Vivienne Marcheline, nascidos em julho. Angelina chegou à suíte do hotel onde eu a esperava, usando calça creme e malha de gola rolê da mesma cor, ambos Ralph Lauren. Estava muito diferente da mulher que vi pela primeira vez em 1999. Começou revelando que hesitou por meses em aceitar o convite para fazer 'A Troca', por causa do tema espinhoso. Mas suas reservas foram dissipadas, quando encontrou traços da personalidade da própria mãe, a atriz Marcheline Bertrand (que morreu no começo de 2007, depois de uma longa batalha contra o câncer), na luta da personagem.

Em 'A Troca', Angelina interpreta Christine Collins, mãe solteira que trabalha numa companhia telefônica nos anos 20, supervisionando um time de ocupadíssimas telefonistas. Quando uma delas falta ao trabalho, Christine precisa tapar a lacuna. Deixa o filho de nove anos sozinho em casa. Ao voltar, não encontra o garoto. Acionada, a polícia de Los Angeles demora para investigar o caso. É mais uma inadequação enfrentada pela força policial local, que vinha sendo acusada de negligência e corrupção na época. A polícia finalmente 'encontra' o filho de Christine, mas a mãe não o reconhece. Para evitar que a crise de imagem seja ainda mais arranhada, a polícia faz uma campanha pública para desacreditar Christine, fazendo-a passar por louca.

A história é verídica, assustadora, repleta de reviravoltas e dirigida por um dos maiores do cinema americano, o ator e cineasta Clint Eastwood. Na mão de uma outra atriz, o desespero e a dor de Christine Collins poderiam ter sido demonstrados com doses de histerismo dramático. Mas Angelina cria uma personagem introspectiva, fria até. Caso a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não a indique para o próximo Oscar de melhor atriz, os cérebros dos membros dessa organização devem ser seriamente investigados. Ela dá um show.

O PRIMEIRO ENCONTRO

Foi num sábado, em 1999, que a entrevistei pela primeira vez. A filha de Jon Voight, que parecia ter herdado o talento do pai (já tendo vencido prêmios pelo telefilme 'Gia - Fama e Destruição'), começava a ser conhecida e trazia com ela uma certa fama de louca. E agora aparecia num hotel de Beverly Hills, o Four Seasons, para promover o filme 'Garota, Interrompida', e lá estava eu para entrevistá-la. Só que meu foco naquele dia não era ela, e sim a atriz principal, Winona Ryder, uma das grandes promessas da minha geração. Com rosto miúdo, angelical e olhos enormes, como uma dessas personagens dos mangás japoneses, Winona era a bola da vez. E era, também, a produtora de 'Garota, Interrompida'. Mas como Angelina tinha roubado a cena no filme, rolavam rumores de que elas não se bicavam. Para conferir ânimo à fofoca, as duas não deram entrevistas no mesmo horário, contrariando o costume nessas ocasiões.

Nesse dia, minha entrevista com Angelina começou cedo, às 9h15 da manhã. Ela entrou numa suíte do Four Seasons vestindo camiseta regata,
jeans branco e chinelos. A primeira coisa que notei foram os quadris. Espetaculares. Mas os inigualáveis lábios assustaram um pouco: estavam ressecados. Para piorar, Angelina tinha sujeira no canto dos olhos, uma gota de sangue em uma de suas narinas e as unhas estavam sujas. O desleixo foi entendido como jogada de marketing. Não era. O que, acho, me deixou ainda mais mal-impressionado. A partir dali, as vidas de Angelina e Winona mudariam para sempre. Angelina ganhou o Oscar de coadjuvante pelo filme, e Winona, depois de ser acusada de furtar roupas numa grande loja de departamentos de Los Angeles, viu sua carreira ser enterrada.

Famosa, Angelina começou a ser percebida pela imprensa como a musa dark. Em entrevistas, comentava sua fascinação por facas e armas. Admitiu que se automutilava, fazia uma tatuagem atrás da outra e gostava de sair com mulheres. E que contemplou, durante um período depressivo, a ideia de contratar alguém para matá-la. Nascia o mito.

Pouco tempo depois, quando nos encontramos no mesmo Four
Seasons, em Los Angeles, agora pelo filme 'O Colecionador de Ossos', vi Jon Voight circular pelos corredores, puxando conversa com jornalistas e, vez ou outra, dando uma espiada na filha. Dois anos mais tarde, Voight diria num programa de TV que Angelina era uma pessoa que precisava de ajuda psicológica. Depois disso, ela rompeu relações com o pai e se livrou legalmente do sobrenome dele. As confusões em sua vida estavam apenas começando.

Em 1999, aos 24 anos, ela conheceu no set do filme 'Alto Controle' o ator Billy Bob Thornton e, em maio de 2000, ela se casou com ele numa capela de Las Vegas. Para celebrar a união, passaram a usar uma cápsula pendurada no pescoço com uma gota de sangue de cada um. Mudaram-se para uma mansão em Beverly Hills, que havia pertencido a Slash, guitarrista do Guns'n'Roses, e faziam, como ela me revelou quando a entrevistei pelo filme 'Pecado Original', em 2001, 'sexo constante e feroz'.

VIRADA DE MESA - E DE IMAGEM

Mas, em 2002, tudo mudaria quando os dois caíram na estrada com projetos diferentes. Billy Bob embarcou para uma turnê para promover seu lado musical e seu CD country e, enquanto isso, Angelina foi ao Camboja para pesquisar o papel em 'Lara Croft'. Lá, visitou um orfanato e viu, pela primeira vez, Maddox, o bebê que acabou adotando. Aí, começaram os rumores de que Billy Bob estava saindo com outras mulheres. Angelina continuou com o casamento, mas Billy Bob não conseguiu desempenhar o papel de pai e eles se separaram. Nessa mesma época, ela começou a trabalhar com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, sendo promovida a embaixatriz da boa-vontade. Era a virada.

Quando, no outono de 2003, Angelina veio divulgar 'Amor Sem Fronteiras', em Nova York, a entrevista foi marcada em um hotel em frente ao Central Park. Ao chegar nas proximidades, vi um grupo de paparazzi atravessando a rua apressadamente. Eram Angelina e Maddox (já com seu famoso penteado de índio moicano), chegando de um passeio de carruagem pelo parque. Notei imediatamente que havia algo de diferente nela. Durante a entrevista, ela me contou que já não era mais aquela garota insegura e dark. No dia seguinte a vi muito séria na tela da CNN falando sobre refugiados, falta de justiça no mundo e economias instáveis. Havia nela um ar de sinceridade, curiosidade e complacência. Se isso era apenas uma fase, o tempo diria.

Angelina estava impingindo ao showbiz americano um novo código de conduta. De repente, falar sobre grifes de vestidos ou de outros assuntos mundanos e rápidos no tapete vermelho, em festas ou entrevistas se tornava redundante e egocêntrico. Abraçar causas sociais e políticas em lugares tão distintos como Darfur, Equador, Camboja, Sudão e Nicarágua virava obrigação para a classe. Antes dela, humanitários como George Clooney, Ben Affleck, Salma Hayek, Reese Whitherspoon e Madonna não existiam.

Angelina não tem um assessor de imprensa fixo, uma raridade na cidade onde cada vez mais pessoas cuidam da imagem, e dos afazeres, de uma celebridade apenas. É ela quem discute pessoalmente estratégias de publicidade ou que supervisiona, com o auxílio de seus advogados, o contrato das famosas fotos de sua prole que estamparam a capa da revista 'People' e de outras publicações estrangeiras, e cuja renda é destinada a diversos projetos humanitários. É a atriz quem carrega os filhos em lojas para comprar roupas, brinquedos e lápis de cor.

PITT ENTRA EM CENA

Mas, em 2007, a polêmica voltaria a sua vida. Foi quando assumiu o romance com Brad Pitt, por quem se apaixonou durante as filmagens de 'Sr. e Sra. Smith' meses antes. Angelina, no papel de amante, se tornaria impopular. Jennifer Aniston, ex de Brad e no papel de traída, criou um chororô em cima da imagem de passada para trás. Hollywood costuma ser mesmo intransigente quando o assunto é adultério.

A nova vida de Angelina, agora mulher de um astro, fez com que a circulação das revistas de celebridades aumentasse. O termo Brangelina, que ela detesta, foi cunhado e as chamadas de capas são constantes, em sua maioria criações fantasiosas e sem base na realidade, como a nova gravidez, a suposta depressão pós-parto, a sempre presente anorexia, os constantes rumores sobre o fim do casamento... e ela decidiu capitalizar em nome de uma boa causa. Posou várias vezes com os filhos para a 'People' e doou a renda. Também prometeu repassar a instituições humanitárias 1/3 de seu salário, que gira entre US$ 12 e 15 milhões por projeto.

Um novo modelo de atriz, para um novo modelo de mundo. Angelina inflaciona o mercado e obriga a classe a se tornar mais interessante -ou relevante- para sobreviver. E eu, que adorava não gostar dela, me rendi a seus encantos.

Fonte: Marie Clarie
Reportagem: Marcelo Bernardes

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